Cronica de Mario de Andrade para amigo IVAN EVALDO KUSSLER - IVAM EVALDO KUSSLER
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O CASO DA ARANHA
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. 2 ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 307.
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. 2 ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 307.
"Este primeiro dia de Paraíba tem que ser
consagrado ao caso da aranha. Não é nada importante porém me preocupou demais e
o turismo sempre foi manifestação egoística e
individualista.
Cheguei contente na Paraíba com os amigos, José Américo
de Almeida, Ademar Vidal, Silvino Olavo me abraçando. Ao chegar no quarto pra
que meus olhos se lembraram de olhar pra cima? Bem no canto alto da parede, uma
aranha enorme, mas enorme.
Chamei um dos amigos, Antônio Bento, pra
indagar do tamanho do perigo. Não havia perigo. Era uma dessas aranhas
familiares, não mordia ninguém, honesta e trabalhadeira lá ao jeito das aranhas.
Quis me sossegar e de-fato a razão sossegou, mas o resto da minha entidade
sossegou mas foi nada! Eu estava com medo da aranha. Era uma aranha
enorme...
Tomei banho, me vesti, etc. fui jantar, voltei pro
quarto arear os dentes, ver no espelho se podia sair pra um passeinho até a
praia de Tambaú, mas fiz tudo isso aranha. Quero dizer: a aranha estava
qualificando a minha vida, me inquietava
enormemente.
Passeei e foi um passeio surpreendente na Lua-cheia.
Logo de entrada, pra me indicar a possibilidade de bom trabalho musical por
aqui, topei com os sons dum coco. O que é, o que não é: era uma crilada gasosa
dançando e cantando na praia. Gente predestinada pra dançar e cantar, isso não
tem dúvida. Sem método, sem os ritos coreográficos do coco, o pessoalzinho
dançava dos 5 anos aos 13, no mais! Um velhote movia o torneio batendo no bumbo
e tirando a solfa. Mas o ganzá era batido por um piazote que não teria 6 anos,
coisa admirável. Que precocidade rítmica, puxa! O piá cansou, pediu pra uma
menina fazer a parte dele. Essa teria 8 anos certos mas era uma virtuose no
ganzá. Palavra que inda não vi, mesmo nas nossas habilíssimas orquestrinhas
maxixeiras do Rio, quem excedesse a paraibaninha na firmeza, flexibilidade e
variedade de mover o ganzá. Custei sair dali.
Os coqueiros soltos da praia me puseram em presença da
aranha. O passeio estava sublime por fora mas eu estava impaciente, querendo
voltar pra ver se acabava duma vez com o problema da aranha. Nuns mocambos uns
homens metodicamente vestidos de azulão, dólmã, calça e gorro. Eram os presos.
São eles que fazem as rodovias do Estado e preparam os catabios. Não fogem. E
não sei porque não fogem.
E fiquei em presença da aranha outra feita. Olhei pro
lugar dela, não a vi. Foi-se embora, imaginei. De-repente vi a aranha mais
adiante. Está claro que a inquietação redobrou.. De primeiro ela ficara
enormemente imóvel, sempre no mesmo lugar. Agora estava noutro, provando a
possibilidade de chegar até meu sono sem defesa. Pensei nos jeitos de matá-la.
Onde ela estava era impossível, quarto alto, cheio de frinchas e de badulaques,
incomodar os outros hóspedes, fazer bulha. A aranha deu de passear, eu olhando.
Se ela chegar mais perto, mato mesmo. Não chegou. Fez um reconhecimentozinho e
se escondeu. Deitei, interrompi a luz e meu cansaço adormeceu, organizado pela
razão.
Faz pouco abri os olhos. A aranha estava sobre mim,
enorme, lindos olhos, medonha, temível, eu nem podia respirar, preso de medo. A
aranha falou:
- Je t'aime".